sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O texto que Miúcha não sabia se sabia escrever

Contracapa do encarte do CD Rosa Amarela


Está lá o texto, letrinhas miúdas, em duas páginas do encarte de Rosa Amarela, o disco que Miúcha gravou para o Japão e foi lançado aqui em 1999. Seria a apresentação do CD, que ela inventou de escrever numa máquina elétrica e acabou saindo muito mais, cheio de revelações sobre ela, os cantos da infância, a primeira vez no Japão, sobre a Música brasileira a cada linha. E que fica mais revelador ainda após a morte dela, ontem, 27 de dezembro, aos 81 anos. A partir de agora é tudo de Miúcha, foi ela quem escreveu.


Gostei tanto desse disco que está sendo difícil me desprender dele. Deve ser por isso que há mais de um mês venho tentando inutilmente encontrar as palavras exatas para essa apresentação, essa despedida, sei lá. É mais um filho que vai morar fora. Fiquei de mandar esse texto até amanhã, acho que vou desistir e telefono para Paulo César Pinheiro, amigo e poeta, na esperança de que ele assuma por mim essa tarefa que eu mesma inventei. Mas ele está dormindo e eu volto à máquina elétrica - acreditam? - batendo na porta fechada de qualquer inspiração. Afinal, um disco não se explica, se escuta, se sente.

Mas certamente ele não existiria sem a colaboração de vários pais, de um lado e de outro do oceano. Surpreendentemente, foi uma gravadora japonesa, a Omagatoki, que me dando total liberdade na escolha do repertório, abriu caminho para um disco tão brasileiro. Para isso contei também com a sensibilidade de Kazuo Yoshida, meu produtor, com quem acabei desenvolvendo uma perfeita sintonia telepática, um clima de confiança e respeiro mútuos. Com Monica Ramos no elenco de apoio, ele convocou músicos maravilhosos como Maurício Carrilho e Jota Moraes para escrever os arranjos. Também reuniu, mais uma vez, o "Buffalo Trio" (Luiz Claudio Ramos, Franklin da flauta e eu) em Santo Amaro, parceria dos dois com Aldir Blanc. Gosto tanto desse choro que apesar de já ter gravado em 1980, achei que agora poderíamos interpretá-lo melhor, como lembrança de nossa primeira viagem ao Japão, em 1996, onde e quando tudo começou.

No Sabbath, Tóquio, em setembro 1996
Nesse ponto do texto que não sei se consigo escrever, aparece a figura de Keiko. Já tinham me convidado algumas vezes para ir ao Japão, mas foi Keiko quem me levou pela primeira vez, para uma temporada em seu "Sabbath", em Tóquio e em Kobe (no final, link para esse show). A gentileza de Keiko, Taichi, sua família e equipe, somada ao imenso carinho que recebi do público japonês, fizeram dessa viagem uma das melhores experiências dos últimos anos. Não poderia imaginar que a essa altura da vida, num país aparentemente tão diferente, eu ainda fosse fazer tantos amigos. Eles me ensinaram o inesperado senso de humor dos japoneses, seu jeito de ser. Sua comida, sua religião, sua arte. A língua, me desculpem, é difícil demais, mas continuo me esforçando. Essa experiência toda foi tão poderosa, que em menos de seis meses depois de minha estréia em Tóquio, o disco estava pronto no Brasil. Acho que foi a melhor maneira que encontrei para agradecer tudo de bom que recebi.

P.S. Paulinho Pinheiro não acorda e eu, que não conseguia escrever nada, continuo cheia de assunto, batucando essa máquina elétrica - já acreditaram? - talvez para ganhar tempo, para ficar viajando nessas lembranças todas que o disco traz. Não foi bem assim que tudo começou. Lembro que me fiz bem séria, me compenetrei muito e comecei a pensar em vários projetos, alguns bem interessantes. Mas, pairava uma sensação de estar forçando a barra, de querer moldar alguma coisa diferente, um antiprojeto, talvez. E tratei de ficar muito quieta, tentando sintonizar aquela atenção desligada que nos faz perceber melhor as coisas mais sutis, e comecei a ouvir algumas canções que já tinham vida própria dentro de mim, que eu já tinha cantado muito, mas por algum motivo não tinha gravado.

Lembrei dos ensaios com Tom Jobim, das tardes douradas na beira do piano, deixando surgir como pássaros, as belíssimas canções de Custódio Mesquita, Bororó, Ary Barroso. De Ary gravei agora Por Causa Desta Cabocla, que me faz pensar em Rafael Rabello e no disco que planejávamos gravar e que nunca aconteceu. Eram noites inteiras de ensaio, então. Noites estreladas, nos cantando, Rafael tocando e os dois chorando copiosamente. Wai-wai. Essas músicas, essas coisas todas ainda me fazem chorar, Rafa.

A Mesma Rosa Amarela tem um caso antigo comigo. Não sei quando e onde nos conhecemos, acho que ela sempre me encantou e eu sempre a cantei. Há muitos anos, me apresentando em Olinda, tive a alegria de reconhecer Capiba, seu autor, na plateia. Galante, me autografou carinhos em seus discos e garantiu que ninguém interpretava A Mesma Rosa Amarela como eu. Fiquei toda prosa e feliz e adorei gravar essa música tão simples e tão terna, que permaneceu fresca e perfumada dentro de mim para florescer agora e dar nome a esse disco.

Quem já conhece um pouco de música brasileira vai notar que, com exceção de De Você Eu Gosto, do Tom Jobim e Aloysio de Oliveira, cuja gravação de Silvinha Telles num velho vinil do começo dos anos 60 guardo até hoje, não gravei nenhum clássico do repertório da bossa-nova, que tem sido tão bem difundido por seus próprios criadores. Procurei dar um abraço maior nessa amplidão que é a nossa música popular, dos anos 30 até agora, com a recentíssima Assentamento, de Chico Buarque, dedicada ao Movimento dos Sem-Terra.
Entre as músicas já cantadas e amadas, inclui também nesse disco João e Maria (Sivuca - Chico), Choro Bandido (Edu Lobo - Chico Buarque) e Só o Tempo (Paulinho da Viola).

Pressentimento (Elton Medeiros - Hermínio Bello de Carvalho) me faz lembrar de Babá, das cantorias na rua Buri, meus irmãos e eu, ainda crianças, imitando as vozes das pastoras de Ataulfo Alves. Valsa de Uma Cidade me faz sonhar com um Rio de Janeiro mais tranquilo e feliz, leve como uma música da Metro.Doce de Coco (Jacob do Bandolim - Hermínio Bello de Carvalho)  é paixão antiga, namoro recente. Paixão recente (e fulminante) foi minha irmã Cristina quem captou antes: Cabrochinha, de Mauricio Carrilho e Paulo César Pinheiro (está na hora de ligar de novo para a casa dele, tomara que já tenha acordado e possa escrever um texto, esse texto, enfim, o que eu prometi entregar até amanhã). Mas como eu ia dizendo, em Cabrochinha sobra um humor muito carioca na melodia, na letra e nos maravilhosos arranjos de sopros, vários instrumentos diferentes, que um só músico, Paulo Sérgio Santos executa com tanta precisão e esperteza. Agradeço a todos os músicos que deram o melhor de si para fazer esta festa acontecer. Foi uma comemoração, e vai ver é por isso que eu não estava conseguindo escrever, descrever nada. É impossível explicar essa mágica que às vezes a música faz acontecer. Não tem explicação nem controle, aparece quando quer e eu fico muito feliz em sentir sua presença e saber que ela nos guiou.

Antonio Carlos Jobim dedicou o primeiro disco que gravamos juntos a Radamés Gnatalli, outro grande maestro brasileiro. E escreveu na contracapa do disco: "O Brazyl não conhece o Brasil." Mauricio Tapajós e Aldir Blanc usaram essa frase como refrão e inspiração para Querelas do Brasil, que encerra esse nosso CD. O Brazyl não conhece o Brasil, Mas espero que o Japão fique conhecendo um pouco melhor, E, recitando também meu Maestro Soberano, gostaria de dizer:
Esse disco é dedicado a Antonio Carlos Jobim, pelos incansáveis, vastos e imensos prestados à Música Brasileira.

          No encarte do disco Rosa Amarela, lançado aqui em 1999.

Aqui, Miúcha no show do Sabbath, Tóquio, em setembro de 1996




E aqui, Miúcha canta a "recentíssima Assentamento, de Chico Buarque, dedicada ao Movimento dos Sem-Terra"


domingo, 2 de dezembro de 2018

Uma declaração de amor aos livros por Clarice Lispector

Na foto, Clarice Lispector com Tonia Carrero

O suplemento do UH

Quando penso em amor aos livros me vem logo esse texto de Clarice Lispector. Só o li muito depois que ela o escreveu, mas é daqueles que permanece. Foi publicado num suplemento de fim de ano do icônico Última Hora, o jornal de Samuel Wainer, em 18 de dezembro de 1968 (faz 50 anos daqui a alguns dias). Nele, Clarice fala de suas primeiras impressões literárias e cita um conto que escreveu depois: o absurdo Felicidade Clandestina, que abre o livro homônimo e é a maior declaração de amor aos livros que pode existir - e tem uma vilã, a menina filha de um dono de livraria. Abaixo, o texto de Clarice Lispector, como publicado em Última Hora. Ah, ela não diz o nome do último livro que cita: é Felicidade (Bliss), livro de contos de Katharine Mansfield, traduzido por Érico Verissimo, que depois viria a se tornar um dos seus grandes amigos.

               O primeiro livro de cada uma das minhas vidas
                                        Clarice Lispector

Busco em minha memória e tenho a sensação quase física nas mãos ao segurar aquela preciosidade: um livro fininho que contava a história do patinho feio e da lâmpada de Aladim. O livro custava um cruzeiro e cinquenta centavos; estou traduzindo direito? Dizíamos mil e quinhentos. Eu lia e relia as histórias; criança não tem disso de só ler uma vez: criança quase aprende de cor e, mesmo sabendo quase de cor, relê com uma excitação de primeira vez.

A história do patinho que era feio no meio dos outros bonitos, mas quando cresceu revelou-se o mistério: ele não era pato e sim um belo cisne - essa história me fez meditar muito e imediatamente identifiquei-me com o sofrimento do patinho feio, já que eu, no meio das outras crianças, era diferente com minhas pernas compridas demais de menina alta. Eu ficava esperando já com impaciência as primeiras demonstrações de que na verdade eu era um cisne que em pequeno não tem a graça do patinho seguro de si mesmo. E a história de Aladim como sua lâmpada soltava minha imaginação para as lonjuras do impossível a que eu era crédula: o impossível estava ao meu alcance. A idéia de um lâmpada que, esfregada, libertava o seu gênio que dizia a Aladim, ou melhor, a mim: sou teu servo, pede o que quiseres - isso me deixava em devaneio profundo. Quieta no meu canto, eu pensava se algum dia um gênio me diria: pede o que quiseres. Mas revelava-se que sou daqueles que têm de trabalhar duro para terem o que querem. Quando acontece.

Tive várias vidas. Em outra de minhas vidas, o meu livro sagrado foi emprestado, porque era muito caro: "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato. Já contei em crônica o sacrifício de humilhações e perseveranças pelo qual passei pois o livro grosso que me prometia o mundo pertencia a uma menina cujo pai tinha uma livraria. A menina gorda e feia tornara-se sádica e, ao descobrir o que valeria para mim ler aquele livro, fez um jogo de "amanhã vem em casa que eu empresto". Quando eu ia, literalmente com o coração batendo de alegria, ela me dizia: hoje não posso emprestar, venha amanhã. Ela própria não lera sequer o livro, como vim a descobrir, e este era virgem. Ah, como eu sonhava em tê-lo nas minhas mãos: era um livro caro e grosso e maravilhoso. Depois de cerca de um mês de "venha amanhã", o que eu, embora orgulhosa que era, recebia com humildade para que a menina não me cortasse de vez a esperança, a mãe daquele primeiro monstrinho de minha vida notou o que se passava e, um pouco horrorizada com a própria filha, deu-lhe ordens para que naquele momento mesmo me fosse emprestasse o livro. Suponho que empalideci ou corei de alegria ao pegar aquele livro. Eu, que andava aos pulos e correndo, andei devagar, segurando com as duas mãos o livro divino contra o peito magrinho de patinho feio. (Não me tornei um belo cisne, nem era patinho feio propriamente: tudo era imaginação minha). Não li o livro de uma vez: li aos poucos, algumas páginas de cada vez, para não "gastar". Acho que foi o livro que me deu mais alegria naquela vida.

O Lobo da Estepe, Herman Hesse
Em outra vida que tive, eu era sócia de uma biblioteca de aluguel que ficava na Rua Rodrigo Silva. Sem guia, eu escolhia os livros pelo nome. E eis que escolhi um dia um livro chamado "O Lobo da Estepe", de Herman Hesse. O nome me agradou, pensei tratar-se de um livro de aventuras tipo Jack London. O livro, que li cada vez mais deslumbrada, era de aventura, mas de aventura interior. E eu, que já escrevia pequenos contos desde os sete anos de idade, fui aos treze germinada por Herman Hesse e comecei em segredo a escreve um longo conto imitando-o: a aventura interior me fascinava. Eu havia entrado em contato com a grande literatura.

Katherine Mansfield
Em outra vida que tive, aos quinze anos, com o primeiro dinheiro ganho por trabalho meu, entrei altiva numa livraria que me parecia ser o mundo encantado onde eu gostaria de morar. Folheei quase todos os livros dos balcões, lia algumas linhas e passava para outro. E de repente, um dos livros que abri continha frases tão diferentes que fiquei lendo presa ali mesmo. Emocionada, eu pensava: mas esse livro sou eu! E contendo um estremecimento de profunda emoção, comprei-o. Só depois vim a saber que a autora não era anônima e era considerada um dos melhores escritores do mundo: Katherine Mansfield.

sábado, 17 de novembro de 2018

Dois amigos, a vida e um sítio



Começo da década de 70. Dois amigos da classe trabalhadora, ambos ali pelos 30 anos,  sonham junto com outros companheiros um partido popular. Em volta deles, a vida acelerada: casamentos, filhos, a amizade, as crises do país, a política, o sindicato.

E não é que no começo dos 80 a fundação do partido vinga? Mais lutas, prisões, filhos, política, o país em crise e isso se acentuando. No começo do novo século o tal partido assume o poder e um deles é eleito presidente.dois amigos lá do início já não estavam no mesmo partido, o convívio diário pertencia ao passado, mas as famílias deles seguiam unidas. Os filhos de um se consideravam irmãos dos filhos do outro, as mulheres eram amicíssimas. ~~ Família, família / Papai, mamãe titia ~~~: assim era e pouco importavam os laços sanguíneos.

E a vida correndo acelerada. Um dos amigos adoece, há um reencontro entre os dois e a convivência é retomada. Um sítio, comprado pelo amigo que não chegou à presidência, serve de ponto de encontro para as famílias dos dois, quando a velhice batia à porta. O amigo que fora presidente transformou o país, diminuindo as diferenças sociais, saiu do governo com altos índices de popularidade e começou a sofrer uma perseguição.

O sítio, lugar de convívio das duas famílias, vira um caso de polícia, manchetes diárias de jornais e TVs, local de lavagem de dinheiro da corrupção. O amigo dono do sítio, agora com quase 80 anos, sofre de Parkinson e quase não sai do apartamento no litoral paulista. O outro amigo, 73 anos, o melhor presidente que esse país já teve, está preso por uma arapuca semelhante: um triplex mais pra puxadinho. Em comum entre o sítio e o triplex o fato de que o tal amigo que virou presidente não é o proprietário de nenhum dos dois.

Depois de sete meses no cárcere, foi depor no tal processo do sítio. E essa história dos amigos Lula e Jacó Bittar, o dono do sítio de Atibaia, tirei do depoimento do eterno presidente, pleno de coerência em todas as falas, mesmo que juízes não queiram. A amizade de 40 anos cinicamente tratada como se associação criminosa fosse. E fiquei imaginando o que teria acontecido com Getúlio Vargas se não tivesse se suicidado. Ou com Juscelino Kubitschek se o tal acidente não tivesse acabado com sua vida. Teria eles sofrido tal perseguição? Teriam ido presos? Teriam aguentado?



sábado, 10 de novembro de 2018

João Gilberto em agosto de 1968 por Augusto de Campos


É Augusto de Campos escrevendo sobre uma visita a João Gilberto. Era agosto de 1968 e João morava em New Jersey, com a mulher Miúcha e a filha Bebel Gilberto, então com dois anos. A ponte para o encontro é a amizade de Caetano Veloso e Gilberto Gil e Augusto leva discos e entrevistas dos dois para João. A visita, o que eles conversam, algumas revelações sobre o jeito de ser de João: é uma beleza de matéria e até  poderia ser um capítulo de uma biografia de João Gilberto. "Penso no gênio de João, na grandeza do seu exílio, na sua recusa ao fácil, no seu apego ao silêncio, na lucidez de sua visão". Abaixo, como publicado no jornal Correio da Manhã.


                                 João Gilberto e os jovens baianos
                                               Augusto de Campos

Falou-se tanto da incomunicabilidade de João Gilberto, que eu confesso que hesitei, frente ao telefone, no Hotel Chelsea, em Nova York. antes de recitar o quilométrico número que me ligaria com o cantor, em Nova Jersey. Enfim, resolvi lançar os dados. Quem me atendeu foi o próprio João Gilberto. Declinei o meu nome, sem grande esperança, acrescentando que era amigo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, dos quais trazia comigo discos e entrevistas gravadas, que gostaria que ele ouvisse. A resposta veio sob a forma de canção. Do outro lado João começou a cantarolar o Superbacana. E em seguida desandou a falar, a falar, sobre Caetano, sobre os jovens baianos:

- Tenho tantas coisas a dizer para Caetano. Ele está fazendo coisas tão lindas. Olha, Caetano anda dizendo por aí que eu sou um gênio. Diga a ele para não falar assim, não. O gênio é ele. Caetano é um poeta. Caetano está lá no alto, lá no alto, lapidando a inteligência. Pra mim é Drummond e Caetano.

Interrompo para saber como ir a sua casa. Ele me diz que eu não me preocupe. Heloísa (sua mulher, irmã de Chico Buarque de Holanda) me dará depois todas as explicações. E retorna:

- Vamos pensar um pouco mais sobre o que Caetano está fazendo. Tenho tantas coisas a dizer para ele. O que é que vou dizer para Caetano - ele se interroga, meio aflito, em busca da palavra precisa. Não, não diga nada disso, não. O que é que eu vou dizer pra Caetano? Diga que eu vou ficar olhando pra ele.

João marcou o nosso encontro para alguns depois, às 10 hroas da noite. Heloísa, ao telefone, explicou o caminho.


Avisei que era marinheiro de viagem e que, por via das dúvidas, eu e Lygia, minha mulher, íamos sair com bastante antecedência. Às 9 da noite, estávamos lá. Nova York pousava, do outro lado do Rio Hudson, em cartão postal. A rua de João é uma rua tranquila, muito arborizada; a casa é ampla e quieta. Fomos recebidos por Heloísa e Isabel, a filhinha deles. Enquanto Heloísa ia e vinha preparando o jantar de Isabel, a garotinha, toda riso, nos fazia companhia. Ela e a sua caixinha de música, inseparáveis. Acredite quem quiser, Isabelzinha, que não tem mais de dois anos, já canta e entoa à maneira de João. De vez em quando dizia para nós: - "Qué Banda?" - apontando para o disco de Chico Buarque.

Estamos conversando e esperando, entre Heloísa e Isabelzinha, há mais ou menos uma hora. A televisão fica ligada, sem som. De João não há notícia. Uns sons meio indestinguíveis parecem vir do andar superior. Heloísa esclarece que João acordou há pouco (são 10 horas da noite!) e que, logo que acorda, costuma fazer exercícios vocais para manter a voz em forma. Ele não gosta que ninguém escute e ficava muito chateado quando eles moravam num apartamento parede-meia que não assegurava o sigilo do seu ioga vocal. De repente (são 10 e alguns minutos) uma voz - a voz inconfundível de João Gilberto - vem lá de cima:

- Augusto, me desculpe, estou preocupado com vocês, eu já vou descer.

Logo está com a gente. Pede licença para ir tomar o seu breakfast à baiana (moqueca de peixe) e volta pouco depois. Heloísa leva Isabelzinha para dormir. João me pergunta do Brasil e dos baianos. Vou recapitulando os acontecimentos importantes, o desafio de Caetano e Gil no III Festival da Música Popular e a sua posterior saída da Record, depois de conquistado o sucesso, a independência com que o grupo baiano tem agido, recusando-se a aceitar a imagem que querem impor para eles e assumindo o risco de novas experiências. João aprova. Quando falo que Caetano está cantando Yes, Nós Temos Banana, João não diz nada. Pega o violão e começa a entoar a marchinha. Canta em ritmo bem lento, naquela sua maneira peculiar, escandindo o yes em duas sílabas: yes-si, nós temos banana. Repete, às vezes, a última sílaba de cada linha para ajustá-la bem no tom. E daí por diante João nos dá um show particular das suas coisas mais bonitas. Vem, entre outros, O Samba da Minha Terra, e a voz de João se confunde com o som do violão nas variações do início e do fim ("q'tim-cumpadim, q'tim-cum-dum, q'tim-cum-dum") até quase perder o fôlego. Canta músicas antigas do repertório de Orlando Silva e, em dueto com Heloísa, muito afinada com ele, Joujoux e Balagandãs. Lembro-lhe aquela noite em que ele e Orlando Silva cantaram juntos na televisão o belíssimo A Primeira Vez, que ele logo reprisa para nós. Canta, num fio de voz, a cantiga de ninar que Heloísa fez para Isabelzinha. E toca, ainda, três das músicas novas que compôs nos Estados Unidos. São composições instrumentais, sem letra, e ainda sem nome: João se refere a elas como "valsa" ou "choro", e uma é dedicada aos médicos que o curaram da dor nevrálgica na mão direita. O "choro" é extraordinário, cheio de harmonias complicadas. O rosto de João ainda está contraído pelo esforço de dar o som preciso, justo: - "Você gostou?", quando lhe digo que é uma das coisas mais lindas que já ouvi, João toma um hausto fundo, mirando em alvo, como que emocionado. Durante todo o tempo, a televisão continua ligada, sem som, só as imagens em movimento. Voltamos a conversar. Do andar de cima, ouve-se o choro de Isabelzinha, que acordou no meio da noite. Subitamente, como o choro continue, João se levanta e diz:

- Eu vou buscar Isabelzinha. Eu não posso. Eu tenho pena dela. Tenho muita pena. Ela quer estar aqui com a gente. Ela não quer perder isso tudo! - Sobe as escadas correndo e volta com a garotinha no colo, superacordada, sorridente e triunfante.

Comentamos os LPs de Caetano e Gil, que andaram comigo por toda a parte, e apaixonaram os alunos das Universidade de Texas, Wisconsin, Indiana. João cantarola Onde Andarás, pergunta quem foi o arranjador desta ou daquela faixa, e a propósito das "imitações" de Nélson Gonçalves e Orlando Silva, que Caetano faz em momentos de Onde Andarás e Paisagem Útil, exclama, entusiasmado:

- Pois é. O bom é que ele não avisa nada. A gente vai ouvir e tem aquela surpresa.

Falo na beleza de "Luzia Luluza" e João e Heloísa se entreolham como se eu tivesse adivinhado um dos seus hits preferidos do disco de Gilberto Gil.

- É, o Gil também é muito bom - diz João - Ele é mais rasgado, mais peito aberto, ele se entrega todo à música.

Quero conferir com ele o meu entusiasmo por essa cantora, ainda não muito conhecida, que é Gal, para mim a mais pura voz feminina de nossa música popular. João concorda:

- Cantora, cantora mesmo é Gracinha (Ele a chama de Gracinha e não de Gal). Cantora para dar aquele tom certo, cantora é mesmo Gracinha.

Pergunto-lhe o que acha da música norte-americana atual. João diz que o que se está fazendo no Brasil é muito mais bonito. Mas fala muito bem de Up, up and Away, na gravação do conjunto The Fifth Dimension.

- É uma música onde tudo é certinho, perfeito. Fale para eles ouvirem. Eles vão gostar.

Heloísa nos serve um doce de côco para matar as saudades. A conversa gira para a vida no Rio e em São Paulo. Eu, que moro em Sâo Paulo, digo que preciso respirar, ao menos uma vez por ano, no Rio. Um pouco de calor para a muita frieza paulistana. João não pensa bem assim. Diz que gosta muito de São Paulo, que o Rio é bom, mas tem aquela coisa, a gente vai comprar um selo no guichê e fica esperando, ninguém atende, em São Paulo não, é tudo organizado; mas acaba concordando e sintetizando tudo numa equação perfeita:

- É, você tem razão. Sâo Paulo é bom por causa do Rio.

João fala no mar do Rio, que é um mar lindo, e no mar da Bahia, que é um mar, é "o" mar. Indago de Amaralina, tão decantada por Caetano. João diz que é uma praia assim como Ipanema, mas com um azul, um azul todo especial.

- Pois é - associo em voz alta - Amaralina. Parece que a própria palavra já diz tudo: Amar... anil... anilina.

João se entusiasma, salta de onde está para um tablado imaginário:

- É isso mesmo. Anil e Anilina, dois irmãos. Amaralina é a tia. "Bom dia, Tia Amaralina" (cumprimentando, no ar, um suposto personagem). Anilina, a menina, é a mais velha. É quieta, não dá trabalho. Anil, o garoto, já não é tão bem comportado.

E prossegue, por um momento, nessa pantomima improvisada em que as palavras viram coisas, viram gente.

São quase três da manhã. Vamos ouvir as entrevistas gravadas por Gil e Caetano. João escuta em silêncio, meditando, esses depoimentos em que se fala muito dele e se debate a "retomada da linha evolutiva da música popular a partir do momento João Gilberto". No fim, ele comenta:

- Que coisa mais bonita. Eles discutem todas essas coisas, eles estudam, eles são muito sérios.

Quatro horas. Partimos para as despedidas. Atravessamos o túnel, de volta a Nova York. Lá ficou o olhar de João, iluminando os caminhos da nova música brasileira. Penso no gênio de João, na grandeza do seu exílio, na sua recusa ao fácil, no seu apego ao silêncio, na lucidez de sua visão. Penso em Anton Webern, o mais radical compositor contemporâneo, o que superou a todos os outros na estima dos mais jovens. Webern, cujo temor físico do ruído - segundo Robert Craft - o fazia relutante até de começar a ensaiar, por saber de antemão que o barulho, a vulgaridade, a má entonação, a expressão falsa e a articulação errada seria uma tortura. "Ouvir Webern tocar uma única nota no piano" - diz Ansermet, citado por Craft - era ter observado um homem em ato de devoção". Webern, a esfinge. Weber, o justo. Webern e João. João e o violão, o cantor e a canção. Como distinguir um do outro?

                           Correio da Manhã, Domingo, 18 de agosto de 1968




quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Amor e Sexo: a Globo em tempos de ascensão do fascismo



Cabaret, o filme com Liza Minnelli, voltou com força e não me sai da cabeça. Na terça, bem depois das onze de horas, tive a sensação de estar em um cabaré daqueles bem libertários de Berlim, pouco antes do nazismo chegar ao poder. E na tela da Globo, vendo Amor e Sexo, o programa de Fernanda Lima que estreava nova temporada bem no olho do furacão mito e com agressões à minorias pipocando pelo País.

Negras eram maioria na cena dominada pela diversidade sexual e num tom isso é muito natural (e é) ou essa foi a minha sensação. E sim, o racismo era destaque sob a bandeira "respeito para todo mundo". Um tom libertário nas falas, nos pedidos, nos números musicais - rappers negras e versos feminismo em todas as letras. Em um dos quadros, homens e mulheres, sexualidades variadas, entravam vendados num "túnel" e daí alguém, também vendado, transitava por ali, era "sarrado" por todos e escolhia alguém. Daí, fora do túnel, tiravam a venda e podia rolar ou não. Entre os primeiros rolou e eram dois homens que se beijaram. Era uma espécie de "namoro na TV" - mais ousado sim, mas um "namoro na TV", nada de sacanagem.  E isso rolou quando era meia-noite ou depois de. Ousadia das ousadias, o que é isso Rede Globo?

No facebook
E como foi essa estreia de Amor e Sexo? Teve rejeição inédita e foi derrubado na audiência em todo o país, diz a matéria de Ricardo Feltrin no UOL. Numa página de adorador do mito no Facebook encontrei esse post (ao lado)  tirei de lá esses comentários:

"Achei péssimo e nojento, desliguei depois de assistir cenas de beijo...": Mulher

"Quando começou este programa eu assistia, pois trazia boas informações, porém com o tempo a Globo entrou nesta onda de acabar com a moral, com a familia e tudo aquilo que prezamos, por isso nem procurei assistir o programa ontem": Homem

"Graças a Deus na minha casa é só desenho e as novelas da Record,já abandonei a Globo faz tempo": Mulher 

"Eu nem assisto acho uma depravação total!!!!!": Mulher

Será Amor e Sexo o primeiro programa da Globo vítima da ascensão do fascismo? 

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Sinais de facadas à beira do fascismo



Fake news do  bando mito
Dei uma geral em todas as fotos de perfil dos meus amigos no Facebook. Havia apenas um com a ameaça fascista explícita na foto e foi pro espaço. Já havia limado outros, conhecidos de adolescência, inclusive. Um deles espiono de vez em quando. É apoiador ferrenho daquilo, da família, do perigo dos gays, dos comunistas, dos males que o PT causou ao País, da demolidora Lei Rouanet, aqueles clichês do bando mito (esse lixo ao lado tirei da página dele). 

Só que tem um detalhe: essa criatura matou a ex-mulher (ela tinha menos de vinte anos) a facadas dentro da igreja onde eles se casaram. Estavam separados há um ano, tinham um filho pequeno e essa história mexeu muito com a minha cabeça - eu já morava em outra cidade e raramente o via. Sim, foi há muito tempo, meio que no rastro do assassinato de Angela Diniz e outros crimes violentos contra a mulher que assombraram o país. Ele cumpriu pena, evangelizou-se e hoje dedica-se a demonizar o "presidiário" Lula e glorificar o "mito". E assim a saga de violência contra as mulheres, facadas e afins vai se perpetuando através dos tempos. E tudo em nome da família.

domingo, 26 de agosto de 2018

"Só a poucos conto a verdade": minha entrevista com Clarice Lispector

Fotografada na sala de seu apartamento pela amiga Olga Borelli, por volta de 1976/77


As perguntas são minhas. Todos os pontos, travessões, aspas e colchete - sim, colchete - são de Clarice Lispector. E foi em 1977, o ano em que ela morreu (em 9 de dezembro), esse encontro que nunca houve. Dois, na verdade. O primeiro, em julho, rendeu as duas primeiras perguntas e as demais, no final quando outubro se aproximava do final.
Agora sério: As respostas foram  retiradas de duas colunas que ela escreveu no jornal Última Hora, o último em que colaborou. Essas colunas estão pela primeira vez em livro no Todas as Crônicas, saindo pela editora Rocco e, para mim, são a cereja do livro, junto com as 13 para a revista Jóia (1968/69). Segue a "entrevista". E ao final, o link para observações sobre a falta de cuidado editorial de Todas as Crônicas que escrevi aqui.

Primeiro foram as crônicas no Jornal do Brasil, depois seus textos nos shows de Maria Bethânia e quem sabe, no futuro, algo que a gente nem pode imaginar agora espalhe ainda mais seus escritos. (nota: em certo exercício de futurologia eu tentava (será?) falar das redes sociais e da 'popularização' de Clarice por elas) Fale sobre 'a questão do perigo de popularizar-se'?
Até que ponto o que se torna conhecido provoca algum descrédito? Suspeita-se daquilo que todos gostam e do sucesso. Verdade é que, pelas muitas vezes em que essa desconfiança acerta, há muitas vezes em que não. Mas, à parte o natural esnobismo a que temos direito - por termos tantas vezes sido vítimas de nossos próprios enganos - à parte disso, a verdade, que nem por ser imponderável deixa de ser real, é que a popularização afeta a coisa escrita.

'A popularização afeta a coisa escrita': interessante isso.
O desvirtuamento feito pela interpretação de muitos agrega-se à obra como um pó, e a partir de certo ponto ninguém mais tem a oportunidade de ler o livro no seu original. O que X entende de um livro altera dele intimamente o sentido quando chega a vez de Y.

Vamos Ler, 1945
Clarice, e se eu lhe dissesse 'em tal livro encontrei uma coisa tão semelhante ao que você escreveu, que parecia escrito por você'?
Eu poderia ficar triste? Ah, tão pelo contrário: encontrei no mundo alguém que é eu. A confirmação de minhas suspeitas, meus pensamentos nunca passaram de fortes ou fracas e enviesadas suspeitas, nascidas de uma desconfiança de quem olha para um lado e para outro antes de tentar entrar. E eis que alguém num livro está me dizendo: pois é verdade, criatura, pois se eu também....

É verdade que você levou um tempo para descobrir Fernando Pessoa?
Embora só tenha lido trechos de Fernando Pessoa, quando comecei tão tarde a ser introduzida no seu mundo por uma amiga, assustei-me deveras: não quero saber mais, senão para sempre sairei de meu mundo, encantado e tortuoso de suspeitas, e entrarei por uma claridade que temo - pois, sem saber explicar, parece-me que a claridade nega a si mesma.

A estante biblioteca de Clarice
Clarice, você é uma pessoa altamente intelectualizada...
Uma amiga erudita, mas que não foi afetada pela erudição, me conta um boato que deveria ser mais certo que a realidade: muitos pensam que sou altamente intelectualizada e que tenho grande cultura. "Mas você", diz ela com carinho, "devia pelo menos, não só para se envergonhar diante dos outros, dar um jeito melhor na sua estante, é uma biblioteca muito desfalcada demais." Conto-lhe então que um homem de letras me disse: "Gostaria de ver sua biblioteca para entender finalmente onde você se inspira para suas coisas." Diz minha amiga: "Você vê que tenho razão."

E isso preocupa você?
Brinco toda secreta de deixar que pensem o que quiserem. Como não tenho remorsos de ser realmente uma "desfalcada" - em outras coisas me dói - estou pura para sentir o gosto do logro. É que também é muito bom enganar, conquanto que a pessoa não engane a si mesma. Só a poucos conto a verdade. No começo tentei dizer a verdade: mas tomavam como modéstia, mentira ou "esquisitice". E desse tipo de contar a verdade não gostei. De modo que passei a me calar. Só a poucos digo a verdade. Essa minha amiga já me diz hoje tranquila: "O escritor tal, no seu livro...", interrompe-se e sem escândalo me pergunta: "Você já ouviu falar nele?"

E o que diria para as pessoas "logradas" por você?
Mas bem que queria deixar um testamentozinho exatamente para as pessoas involuntariamente logradas por mim: Deixo-lhe minha incultividade que em si não me deu nenhum gosto e até muitas falta me fez, mas deixo-a [para o senhor], pois foi tão bom que o senhor não a supusesse: deixo-a intacta, pronta para ser transmitida, A cultura não se lega, porque a pessoa mesmo tem que trabalhá-la, mas a vantagem de uma relativa incultura é que se pode entregá-la a outra pessoa... eu bem sei que triste legado.

E aqui, o link para "Livro reúne quase todas as crônicas de Clarice Lispector





sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Livro reúne todas as crônicas de Clarice Lispector. Ou quase


Livro Todas as Crônicas: R$ 89,90

Com uma foto belíssima, 700 páginas e capa dura, o livro Todas as Crônicas, saindo pela Rocco, impressiona já ao vê-lo exposto na livraria. Até pelo título que se pretende abrangente, definitivo. Mas estarão "todas as crônicas" ali mesmo?  A editora segue as pegadas de sucesso da bem editada coletânea Todos os Contos (2016), que abrigava em um só volume os livros de contos da escritora e mais alguns dispersos. O cuidado editorial aqui não parece o mesmo e várias "falhas" tornam o título impreciso, o que é uma pena.

Tribuna da Imprensa, 4 janeiro 1974
Foi como colunista do Jornal do Brasil que Clarice Lispector encontrou popularidade e começou a espantar o "hermética" que a crítica insistia em colar nela. De agosto de 1967 a dezembro de 1973, Clarice escreveu lá todo sábado. Foram quase seis anos até ser demitida no meio das festas de fim de ano por um bilhete (à esquerda), tendo devolvidas três crônicas que estavam no jornal como adiantamento. E isso o prefácio (fofo) de Marina Colasanti não conta. Nem o posfácio.

Essas colunas, que rechearam livros como A Descoberta do Mundo (1984) e Para Não Esquecer (1978),  são  a cereja do bolo aqui e vão até a página 575 de Todas as Crônicas. Depois dessa primeira parte com a produção da era JB 1960/1970, o volumoso livro dá um drible na cronologia. Suas últimas 120 páginas, a segunda e terceira partes, são de textos  inéditos em livro. Eles vêm de O Jornal (sete, de 1946), revista Senhor (seis, de 61), revista Jóia (20, de 1968/69), as derradeiras em Última Hora (seis, de 1977, o ano em que ela morreu) e do livro Para Não Esquecer (15, sem data, sim, sem as datas em que foram escritas).

Todos os contos: 2016
Datas: eis um dos problemas desse Todas as Crônicas, que as  dispensa no corpo do livro, além do que apenas três asteriscos separam as colunas, que vão se emendando confusas. Se quiser saber a data, o leitor precisa consultar o índice ao final, o que dificulta o prazer da leitura e de situar o momento preciso em que Clarice as escreveu. Mais: por confusos "critérios editoriais" que o posfácio tenta explicar, foram retiradas crônicas (ou contos) que Clarice publicou na coluna e depois lançou em livros, trocando os títulos, muitas vezes. Por esse "critério editorial" dançaram trinta textos (praticamente todos estão em A Descoberta do Mundo) que, às vezes, ela parcelava a publicação em duas, três ou até quatro semanas consecutivas. Ao final, no posfácio que leva o título "Crônica de todas as crônicas", estão listadas essas três dezenas de exclusões e com a página em que se encontram em Todos os Contos (os dois livros são da mesma editora). "O ovo e a galinha", "A legião estrangeira", "Felicidade clandestina" são alguns dos contos famosos publicados no JB e suprimidos aqui. Ok, critério editorial e ainda serve para não aumentar muito as 700 páginas, o que inviabilizaria a edição. E, para não complicar mais, melhor nem tocar nos critérios dessa divisão crônicas, novelas, contos, pensamentos, anotações.

VOCÊS SE LEMBRAM DE GLÓRIA MAGADAN?

A Descoberta do Mundo, o livro com as colunas de Clarice no JB, é considerado por muita gente o melhor da escritora. Há quem o leia como Bíblia, abrindo ao acaso e conferindo a página diante de seus olhos. Estão lá grande parte dos escritos dela publicados no jornal. Muitos que ficaram fora são agora recuperados, "cerca de 60 textos (entre crônicas e notas)", avisa o posfácio. Entre os "recuperados", destaque para dois em que Clarice fala do incêndio de que foi vítima e que a deixou três dias entre a vida e a morte: "Rispidez necessária" (16 maio 1970) e "Vocês se lembram de Glória Magadan?" (10 abril 1971). O incêndio também é o tema de  "Mistérios da alma humana", essa em outubro de 1968, na revista Jóia,

"Assim, grande atenção foi necessária para não deixar escapar nem um único fragmento sequer dos textos publicados no Jornal do Brasil", avisa o posfácio. Mas muitos ficaram de fora sim. Pode-se citar dezenas, mas vou resumir em "Apenas um cisco no olho" (abaixo), que em 29 de dezembro de 1973, com esse título premonitório, encerrava a coluna e a participação de Clarice no JB. Acabava assim: "Pois, como eu ia dizendo, lembrei-me do Ano-Novo, assim, de repente. Desejo um 1974 muito feliz para cada um de nós." Com a demissão súbita e a perda do espaço no Jornal do Brasil, o 1974 de Clarice Lispector foi complicado. E esse último texto histórico não poderia ficar de fora de um livro que se chama Todas as Crônicas, sejam quais forem os "critérios editoriais".



Outro "critério editorial" foi eliminar citações de autores famosos que Clarice fazia, às vezes praticamente na coluna toda, entre aspas, claro. O campeão era Jorge Luis Borges, que aparece em várias colunas. Em outras vezes, traduzia textos que lia e lhe chamavam a atenção. E a partir desses autores, volta e meia falava de si mesma. Em "A descoberta", maio de 1973, citava um trecho de Truman Capote (à direita) sobre superstições para dar observação dela sobre o tema. Em 18 de julho de 1970, a coluna "Folclore brasileiro" reunia algumas lendas de Henriqueta Lisboa e uma observação: "A primeira ("Mulher dengosa") eu ouvi de cozinheiras da minha infância." Em 11 abril de 1970, usa resposta de Hemingway (à esquerda) quando perguntado se a situação financeira do escritor prejudicava a boa literatura. Claro que isso não estava ali de graça, ela provavelmente usava o escritor para falar de algo que a inquietava. Tem muitos, muitos mais exemplos disso e essas licenças reveladoras estão todas fora de Todas as Crônicas. O interessado por Clarice perde a chance de saber quem eram os escritores que ela lia (ou até traduzia) naquele momento.


O livro A Descoberta do Mundo como modelo é evidente até na repetição de alguns "erros" que existiam nele. Em vez de recorrer às colunas originais, simplesmente repetem o que está no livro anterior. "As dores da sobrevivência: Sérgio Porto" não encerra a coluna do dia 28 setembro 68, como registra Todas as Crônicas e ocorria em A Descoberta. Abre a do sábado seguinte, 5 de outubro. "Mãe-gentil", que fecha a coluna de 12 de outubro de 1969, chama-se "Mãe-gente", na coluna do JB. Errinhos que poderiam ser facilmente corrigidos numa visita às colunas originais do jornal, aliás disponíveis na internet.


"Outra reintegração significativa no campo das artes plásticas foi a da crônica "Paul Klee e o processo de criação", datada de 22 de julho de 1972", diz o posfácio. Ueba, corro ao índice e a crônica não está lá. Ficou de fora. (ao lado a coluna do JB)



Diário Carioca, 1950
Clarice recorria muitas vezes ao baú e textos escritos em diferentes épocas eram publicados outra vez, às vezes mudando o título. Todas as Crônicas traz alguns dos anos 50, republicados quase 20 anos depois. Avisa o posfácio: "É o caso, por exemplo de "O medo de errar", publicado no jornal A Manhã em 2 de julho de 1950, e que vai aparecer na edição de 13 de setembro de 1969 do Jornal do Brasil". É nessa data que "O medo de errar" aparece no livro. Por que não a de sua primeira publicação? O posfácio cita vários casos e ignora muitos outros. Exemplos: "A sala assombrada" (JB 27 de setembro de 1969) foi publicado primeiro no Diário Carioca, em 1950. "Algumas pessoas" (ao lado), também do Diário Carioca em 1950, gerou duas crônicas no JB: "A inspiração" (9 maio 1970) e "A antiga dama" (27 novembro 1971). Como no original havia quatro histórias, pode ter gerado mais duas, que não identifiquei. Ah, O Diário Carioca não consta no livro como um dos órgãos de imprensa em que Clarice colaborou.

CHILDREN´S CORNER

Clarice em O Jornal: 1946
Em 1946, morando na Suíça, Clarice Lispector enviou colaborações para jornais cariocas. "Eu também publiquei algumas coisas , na Manhã e no Jornal. São pequenos trechos, algum poema, tudo ligado pelo título geral de "Children´s corner". Talvez eu mande para você, mas não vale a pena.", ela escreve em carta datada de 8 de fevereiro de 1947, para o amigo Fernando Sabino, que morava em Nova York. Essas primeiras colunas dela, publicadas em duas edições de O Jornal, rendem nove páginas de Todas as Crônicas, que exclui dois textos: "O manifesto da cidade e A rosa branca", publicados em 2 de fevereiro de 1947. Como assim, excluir dois contos da estreia da colunista Clarice? Pois é.

Está aí, no final de 1946, o início do título "Children´s corner", uma marca de Clarice. Três anos depois, ela começou colaboração no Diário Carioca e a coluna de estreia (2 julho 1950) saiu sem título. Na edição seguinte vinha a errata: "àquelas anotações diversas se deu o nome de "Children´s Corner"." No final dos anos 50, Clarice retomou "Children´s corner", para nomear sua seção na revista Senhor. Foi na Senhor que Clarice se tornou mais "conhecida" e foi lida pelo garoto Caetano Veloso, que depois iniciaria a irmã Maria Bethânia nos mistérios de Clarice, mas essa é outra história.

JÓIA

Os escritos para a Jóia, revista mensal feminina da editora Bloch, estão aqui em 36 páginas. São de 1968/69, quando ela já escrevia todo sábado no JB. "Tati Moraes e eu traduzimos uma peça de Lilian Hellman para Tonia Carrero levar": assim começa "Traduzir procurando não trair", a primeira das "crônicas" na Jóia, sobre suas experiências com tradução. Interessante, mas que peça foi? Clarice não conta e Todas as Crônicas, que dispensa as notas de rodapé, também não desvenda. Trata-se de Os Corruptos, montada por Tônia em 1967. Inéditas em livro, essas crônicas da Jóia, as mais numerosas depois das do JB,, trazem bastante informações para quem quiser conhecer mais do cotidiano de Clarice - idas ao teatro, encontros com os amigos.

As seis crônicas de A Última Hora valem por serem as derradeiras de Clarice. Como várias já haviam saído em outros jornais e livros, não foram incluídas em Todas as Crônicas. A última em UH, o posfácio informa, é "Tempestade mental", na edição de 5 e 6 de novembro de 1977, "na semana em que faleceu", informa erradamente o prefácio. Clarice morreu um mês depois, em 9 de dezembro. 

Segue o posfácio: "Todavia, esse texto nada mais era que "Brain storm", editado no Jornal do Brasil em 22 de novembro de 1969. Era sim e voltou  também em 1º setembro de 71 como o título de "Tempestade de almas", isso não informam. Enfim, "Tempestade mental" não foi incluída em Todas as Crônicas, porque está em Todos os Contos  e com esse título. Confuso? É. E bastante. Um emaranhado, mas que poderia ter sido resolvido em uma edição mais cuidadosa.

O Cruzeiro

Os quinze textos do livro Para Não Esquecer formam a terceira e última parte desse Todas as Crônicas, sem informação de quando foram escritos e nem de onde foram publicados. Parecem estar aqui apenas para justificar o "Todas" do título. De dois deles consegui a origem: "Berna" e "Um homem espanhol" saíram na revista O Cruzeiro, com os títulos  de "Instante alpino" e "Pepe, el guia" (ao lado), em setembro de 1949 e fevereiro de 1950, respectivamente. E na prestigiada página três, que abrigava crônicas escritas por mulheres. Todas as Crônicas omite essa origem e nem fala nas colaborações de Clarice Lispector em O Cruzeiro, a revista mais prestigiada daquela época.


Todas as Crônicas não é livro que vá interessar aos não-iniciados na obra de Clarice Lispector. E essas "falhas" servem para diminuir o prazer da leitura para os iniciados. E não, o título exagera, ali não estão "todas as crônicas" escritas por Clarice. Um "Quase" caberia muito bem no lugar de "Todas". Uma parte dois pode vir a nascer tranquilamente. E A Descoberta do Mundo, que não inclui todas as colunas do Jornal do Brasil, segue sendo o melhor livro editado com elas. Foi a coluna no JB  que começou a levar o verbo de Clarice Lispector a um público maior. E esse público aumentaria com Maria Bethânia declamando seus textos em shows. Essa também é outra história. E até já escrevi um pouco sobre isso. (Link abaixo)

http://viledesm.blogspot.com/2017/12/a-mulher-que-popularizou-clarice.html


Quem quer brincar de boneca? Texto de Vange Leonel

O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...