sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Clarice Lispector e o LSD

Clarice Lispector e Fauzi Arap em 1965: Perto do Coração Selvagem

Nas biografias de Clarice Lispector não existe referência à experiência com LSD. Quem toca no assunto é Fauzi Arap em Mare Nostrum – Sonhos, viagens e outros caminhos, que escreveu em 1998. Foi Fauzi, que morreu em 5 de dezembro de 2013, quem aproximou a escritora de um público mais pop. Em 1965, ele adaptou Clarice para o teatro com o espetáculo Perto do Coração Selvagem, que tinha Glauce Rocha e o jovem José Wilker no elenco.. E o principal: foi Fazi quem apresentou Clarice a Maria Bethânia, incluindo textos dela nos shows da cantora, primeiro em Comigo me Desavim (1967),  depois no histórico Rosa dos Ventos, cuja  pequena porcentagem na bilheteria rendia muito mais que a venda de muitos de seus livros, e em muitos outros shows. A partir daqui é Fauzi quem conta, tudo retirado do livro, de um capítulo que se chama Perto do Coração Selvagem. Abaixo os trechos principais.

“Foi quando descobri Clarice Lispector. Em 1964 foram publicados dois livros da escritora: A Legião Estrangeira e A Paixão Segundo G.H. Mas, em minha memória, me parece que só vim a descobri-los em 1965, já em minha volta ao Rio. Desde as primeiras linhas, A Paixão se anunciava como um encontro salvador:

.... estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.

O alívio que a leitura do livro me trouxe, eu não soube explicar exatamente num primeiro momento. Mas era surpreendente como aquele livro retratava minha própria viagem lisérgica, de forma elegante e completa. Para mim, desde o início, não se tratava de literatura, mas quase de um milagre. Apesar de Clarice, na época, ser considerada uma escritora difícil, ela me soava fácil como se fosse uma velha conhecida.

(....)

Acho que desde o início planejei adaptar A Paixão para o teatro. Cheguei a rascunhar algumas ideias, mas não era fácil. E foi numa mesa de bar que Carlos Kroeber, o grande ator e homem de teatro, acabou encampando a ideia e me animando a seguir adiante. Tínhamos uma grande aliada, a grande atriz Glauce Rocha, também apaixonada pelo romance, e meu sucesso pessoal em Pequenos Burgueses me abria muitas portas. Acabei por escrever um roteiro,m que incluía A Paixão, fragmentos de A Legião Estrangeira e dois diálogos de Perto do Coração Selvagem, primeiro romance de Clarice, que acabamos escolhendo para nome do espetáculo.

A primeira vez que encontrei Clarice foi em seu apartamento no Leme, um bairro tranquilo do Rio. Fui mostrar-lhe o roteiro e quem sabe conseguir sua aprovação. Mal acabei a leitura, fui surpreendido com o que ela disse. Imaginei não ter compreendido bem, mas ela repetiu – ela realmente estava me perguntando se poderia publicar meu roteiro!? Eu perguntei: “Como assim? È tudo seu!”. E ela disse que ficava “tão simples vista por mim...

Depois da entrevista, desci eufórico com o sucesso, e só lá embaixo descobri ter esquecido a pasta com roteiro e anotações. Voltei, mas tomei o cuidado de bater na porta de serviço para tentar não incomodá-la. Mas ela me surpreendeu vindo entregar o material pessoalmente, e principalmente se desculpando comigo por nosso encontro ter sido muito “intenso”. Eu não soube o que responder e demorei a compreender o sentido que do que ela dizia. Ela insistiu, dizendo que da próxima vez falaríamos de assuntos mais leves e corriqueiros! Para mim, naquele momento ela ainda me parecia meu par ideal, com quem eu poderia no futuro falar sobre absolutamente tudo, sem censura. Mas ali eu testemunhava um primeiro indício de alguma coisa que eu viria a descobrir ser uma espécie de autocensura, que ela praticava para caber no mundo de todos.

(...)

Nos meses seguintes, voltei a visitar Clarice algumas vezes. Mas foi só aos poucos que descobri que minha insistência em conversar sobre percepções alteradas e estados de consciência especiais a incomodava. Para meu espanto, compreendi que ela só se permitia escrever sobre tudo aquilo, mas se recusava a falar da mesma forma. Assim como eu havia escolhido seu livro como álibi para falar do que me interessava, para ela também a literatura era um álibi. E seu extremo cuidado com as palavras não era casual. Era sua prática cotidiana para tentar caber no mundo, sem escandalizar ninguém. De alguma forma, ela pretendia não ser responsável pelo que escrevia.

Entre 65 e 71, com minha volta a São Paulo, pouco nos encontramos. Só depois que o tempo passou, pude compreender que, naquele momento, minha adoração silenciosa de fã e tiete, que gostaria de transferir para seu ídolo toda a responsabilidade de existir e caber dentro da vida verdadeira, era um peso a mais para sua vida torturada. Acabei incluindo textos seus nos shows que vim a fazer com Maria Bethânia, em 67, e mais tarde, em 71. E foi em 71 que nos tornamos amigos. Ela me deu os originais do livro que viria a ser publicado em 1974 – Água Viva. E eu escolhi um trecho para o final do show Rosa dos Ventos. Fiquei surpreso quando descobri que ela acabava ganhando mais com sua pequena participação na bilheteria do show do que com a publicação de muitos de seus livros. Entre 71 e 74 ficamos grandes amigos, e aí eu não era mais o fã, mas um companheiro solidário, com quem ela podia se abrir e desabafar. E foi numa dessas vezes que ela acabou me fazendo uma revelação espantosa – que ela havia experimentado o LSD, como eu, na companhia do mesmo Dr. Murilo Pereira Gomes.

Ela me disse ter aceitado experimentar o ácido num grupo de escritores, que incluía Paulo Mendes Campos, devidamente acompanhados pelo Dr. Murilo, mas que ela não havia sentido absolutamente nada. Disse até que a certa altura se ofereceu para descer e comprar sanduíches para todos. Foram preciso muitos anos, e ter me tornado seu amigo, para descobrir que a forte impressão que eu tivera de que A Paixão Segundo G.H. relatava uma experiência lisérgica não havia sido gratuita. Eu já sabia que no caso de A Paixão, ao contrário de outros romances como A Mação no Escuro, que ela reescrevera quarenta vezes, a feitura fluíra de forma espantosa. Ela me havia contado que a cada dia ditava um capítulo para uma amiga, e que não havia retocado nem uma linha.

O cuidado que o Dr. Murilo tinha de espaçar as sessões lisérgicas com um intervalo mínimo de quinze dias se devia ao fato de muitas vezes o ácido agir de forma retardada, informação que constava do folheto explicativo da Sandoz. Nos dias subsequentes a uma sessão, a qualquer momento, poderia acontecer de aflorar do inconsciente mexido algum tipo de resposta ou insight , mesmo que durante a sessão o indivíduo não tivesse se permitido o reconhecimento. Eu já conhecia outros casos de pacientes que não reagiam ao ácido, mesmo que as doses ministradas pelo Dr. Murilo fossem aumentadas e muito. No meu modo de ver, apesar de Clarice não ter sentido nada na reunião propriamente dita, com certeza foi o LSD que catalisou mais tarde o estado de verdadeira inspiração  em que ela escreveu o livro, considerado sua obra-prima. A aparente coincidência vivida por mim, em 65, ao encontrar o livro, não havia sido nada fortuita.

(...)

Não consigo ver A Paixão Segundo G.H. apenas como literatura. Embora Clarice tenha criado a personagem como um tênue disfarce sobre si mesma e suas percepções espontaneamente transcendentes, o livro não passa do relato da viagem essencial dela mesma, Clarice Lispector. Raras vezes a arte atinge essa capacidade de mergulho análoga a certos êxtases dos santos e capaz de provocar a chamada “suspensão da descrença”. Ao capturar o registro essencial de uma mudez de alma como a que vive sua personagem, Clarice acabou ultrapassando os parâmetros da cultura e da estética, para estabelecer uma verdadeira revelação. Apesar de disfarçada de “arte”, para mim, A Paixão não passa de um relato iniciático. Uma das vantagens de ser artista é o descompromisso que possibilita uma linguagem aberta, capaz de alcançar até mesmo os céticos e profanos.
(...)


Abaixo, A Mulher que "popularizou" Clarice Lispector: Maria Bethânia
http://viledesm.blogspot.com.br/2017/12/a-mulher-que-popularizou-clarice.html






Um comentário:

Ronaldo Cooper disse...

Tão bom quando a realidade vem a tona e desmistifica nossos ódolos. Ótimo relato Vilmar. Abraço

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O filme Barbie está por todo lado. E de tanto ouvir falar em boneca, me lembrei de um texto de Vange Leonel sobre elas e fui até grrrls - Ga...