terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Um conto natalino pouco conhecido de Jorge Amado


Graciliano Ramos e Mario de Andrade
Erico Verissimo
Fiquei maluco quando topei com uma edição de Natal da revista O Cruzeiro de 1939. Lá estavam contos de Graciliano Ramos, Mario de Andrade, Jorge Amado e Erico Verissimo. Atribulações de Papai Noel e Briga das Pastoras, os de Graciliano e Mario, frequentaram livros. Os de Jorge e Erico, duas joias, não e pareciam confinados lá à espera de leitores. Noite de Natal em Porto Alegre, o de Erico, foi publicado no domingo anterior ao Natal na Zero Hora, jornal de Porto Alegre (Aqui o link https://t.co/sOdPFCvvYS). Visita ao Presépio de Quinquina, o de Jorge Amado, é bem pouco conhecido. Enviei pra Josélia Aguiar que escreve uma biografia do autor baiano e ela confirmou isso. Jorge tinha 27 anos e fugindo da perseguição do Estado Novo de Getúlio Vargas refugiou-se em Estancia (Sergipe), que é o cenário do conto. E Quinquina, vinte anos depois, vira personagem de Gabriela – o presépio também. O Natal já passou, mas os presépios ainda não foram desmontados e ainda há tempo de visitar Estancia e o Presépio da Quinquina. Abaixo o conto. 



             Visita ao Presépio da Quinquina
                                                               
                                       Jorge Amado



Ora, quem sabe se um dia os fados não vos levarão a entrar num trenzinho da Leste Brasileira que, com um atraso médio de nove horas, vos deixará em Salgado, vila perdida de Sergipe? E quem sabe se esses fados não continuarão a brincar com o vosso destino fazendo com que aí embarqueis num auto ou num ônibus em direção à cidade de Estancia? Se assim for, abençoarei os fados, porque terão sido bons fados. Estância será para vós uma bela surpresa e se não estais com o coração de todo murcho amareis com certeza esta cidade lírica e jovial, cercados pelos rios e penetrada por um bosque. Vos sentireis românticos e poetas andando nas ruas largas de Estancia, olhando os velhos casarões de balcões floridos e vendo a boa gente que atravessa as ruas num passo sem pressa. Vossos olhos contemplarão velhas centenárias que sabem histórias de outros tempos, histórias de um sabor inesquecível, e verão também o maravilhoso espetáculo da noite de Estancia, bela sobre todas, noite na qual sobram as estrelas e o luar. Vereis a lua mais inspiradora e as mais brilhantes estrelas. Muita coisa mais vereis também se descerdes ao cais, onde as palmeiras e as canoas olham o mar distante e o rio próximo.

Mas se os fados de tão bons forem a fada da bondade e vos levaram a Estancia no Natal, então, ó viajante, cruzai a rua Capitão Salomão, penetrai no Parque Triste e, ao primeiro estanciano que encontrardes, perguntai onde fica a casa da minha prima Quinquina. Ele vos indicará com a gentileza que caracteriza o filho desta cidade. Marchai então para lá e marchai sem receio. Não é preciso sequer que digais o vosso nome. Na porta encontrareis uma das irmãs e basta anunciar que quereis ver o presépio. Antes com certeza vos farão entrar na sala de jantar onde pedirão que, entre diversos licores, decidais daquele que querereis beber. Será sem dúvida uma escolha difícil porque sobre a mesa encontrareis licor de jenipapo, talvez com mais de três anos de engarrafado, licor de mangoba que é tão fino como o mais fino licor francês, licor de banana que contém vitamina e muitos outros mais. Porém se quereis um bom conselho provai primeiro o licor de abacaxi. Ele é feito por Géo e duvido que sobre a face da terra, alguém saiba fazer um licor de abacaxi como a minha prima Géo. Ao meu ver é uma das glórias da família esse licor de abacaxi. Provai, porque depois provareis de todos os demais e, se não sois totalmente cretino, dareis estalos com a língua, estalos que porão rosadas de alegria as faces de Géo. Com certeza encontrareis doces e bolos também e vos aconselho que aceiteis porque por isso não só comereis de um prato gostoso como deixareis radiante de felicidade a minha prima Quinquina que faz os doces. E assim, de estômago satisfeito, elas vos levarão, humildes e se desculpando, a ver o presépio.

Antes era a sala de visitas. Essa sala de visitas que se abre exclusivamente nas grandes ocasiões, quando a visita é de muita importância. Agora ela desapareceu, o presépio domina tudo. Reparai bem que o presépio é uma multidão mas não é uma confusão. Ao primeiro momento pode vos parecer que as figuras recortadas do Tico-tico e pregadas sobre papelão estejam misturadas com os burros e os bois de barro que são vendidos nas feiras do nordeste. Que as estampas religiosas (Santa Rosa de Lima, que é a santa dos olhos e da luz, e São Benedito, que é preto) estejam profanamente próximos dessas estampas recortadas de revista mundana e que são homens e mulheres elegantes, todos nas ruas de areia e conchas que levam à manjedoura. Mas não há tal mistura se atentardes bem no presépio. Observareis que vários são os planos dessa cidade em miniatura que minha prima Quinquina constrói todos os anos na sua sala de visita. E os santos estão num plano mais alto, os burrinhos e os bois num plano mais baixo como num terceiro estão os homens e mulheres e o pastor com seu rebanho de carneiros brancos. São muitas as ruas também, rua calçada de areia que veio de Mangue Seco e nas quais as conchas brancas e cor de rosa semelham calhaós enormes. São as ruas de Bethlem, onde nasceu o Cristo. Vós não sabeis bem como eram as ruas de Bethlem, eu não o sei tão pouco. Só um velho historiador, desses que passam a vida sobre antigos papéis, poderia dizer como eram de fato as ruas da cidade que assistiu ao nascimento do Menino. Mas um historiador velho, dobrado sobre os documentos, é um homem que já perdeu toda a poesia da vida e a sua descrição seria seca e triste, desinteressante e por tudo isso falta de verdade. Porém minha prima Quinquina sabe perfeitamente como eram as ruas de Bethlem. Sabe que eram pobres porque foi principalmente para os pobres que o Cristo veio. Sabe que eram em vários planos, enladeiradas e cheias de calhaós porque a vida de Cristo não foi suave e ele amava as ladeiras e as montanhas. Sabe que havia cisternas porque o Cristo amava também a água, símbolo de toda a pureza. Sabe que os rebanhos andavam nas ruas porque sabe que o Cristo era toda bondade e amava igualmente aos animais. Sabe que havia uma confusão de gente, santos e pecadores, mendigos e elegantes, crianças e mulheres, porque Cristo amou a todos, sem distinção. Os demais perderam a visão da cidade de Bethlem, não sabem das suas ruas nem da gente que nelas estava, porque perderam a visão do Cristo ou a quiseram adaptar a si. Mas minha prima Quinquina sabe que o Cristo foi bom e foi bom para todos, sem distinção de classes e mesmo sem distinção sobre a virtude e o pecado. Sabe que o Cristo foi humano também e ela não esqueceu essa lição de humanidade. Ela não leu os teólogos, os tomistas, os neo-tomistas e guardou a visão perfeita do Cristo: a suma bondade, a suma humanidade. Por isso é essa multidão que parece confusão no meio das lâmpadas pequenas que iluminam a cidade e a manjedoura. Por isso vão bois de mistura com crianças, burros ao lado das mulheres e homens pecadores ao lado dos santos. E se caíssem uns livros ilustrados na mão da minha prima, ela não teria receio de por Voltaire, Nero, Robespierre, Marat e Calígula, todos os que foram e são na Terra inimigos do Cristo, porque sabe que o Menino os receberia com o mesmo olhar sereno, e como esses inimigos são muito diversos entre si, ele sorriria para aqueles que só combatem a caricatura que dele fizeram os homens e abrandaria com o olhar os que odeiam a sua verdadeira figura. E seu olhar suavizaria uns e outros corações.

Descansai os olhos na manjedoura onde o Menino dorme, cercado pela Virgem, por São José, os Reis e os animais. Não deveis vos importar se há desproporção entre as figuras, se o Menino é maior que todos porque em verdade o era e isso também minha prima Quinquina adivinhou porque na sua pobreza e na sua bondade ela sabe tudo que se refere ao Cristo, sobre todos bom e sobre todos pobre.

Viajantes cansados dos Natais das grandes cidades com presentes caros e champagne: ide a Estancia e no Parque Triste encontrareis o presépio de Quinquina. Bebereis licor, comereis bolo de aipim, conversareis com as velhas. E na sala de visitas encontrareis, pobre e nu, cercado, no entanto, de Reis, santos, homens, mulheres e animais, Cristo, o verdadeiro, o que perdoou Madalena, lavou os pés dos mendigos e pescou com os pescadores nas águas do Jordão.

                                             O Cruzeiro, 23 de dezembro de 1939



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