Em 1947, Clarice Lispector morava em Berna e foi com o marido para a Espanha. Nesta crônica, publicada em O Cruzeiro, no começo de 1950 quando passou um período no Brasil, ela escreve sobre a viagem a partir das lembranças de Pepe, o guia que os acompanhou em Córdoba. Foi publicada com o título de Um Homem Espanhol na primeira edição de A Legião Estrangeira (1964),, numa parte de escritos curtos chamada Fundo da Gaveta.
- Ustedes no tienen un guia. Ustedes tienen Pepe el Guia!
Paramos emocionados diante do que deveria ser uma
coincidência singular. Qual? apenas uma coincidência. Pepe el Guia
imobilizara-se com os olhos úmidos de emoção, de vinho, de calor e de
desespero. Devia ser extraordinário e pesado ser – Pepe el Guia! Ainda parado,
o rosto escorrendo suor, a infalível roupa escura da elegância – mais um
momento e tornar-se-ia extraordinário não só ser Pepe el Guia como uma pessoa
ser ela mesma, como ser espanhol entre tantas possibilidades, estar sob o alto
céu azul de Córdoba quando também existe Londres, e Córdoba existir neste
mundo: o milagre passou por nós em fraca brisa. Em torno, a cidade se estendia
doce e quente, insuportavelmente doce, cheia de cegos indecisos e de mulheres
mais indecisas ainda. Havia no entanto uma aspereza. Aonde estaria? talvez nos
sonhos destemidos dos homens que sonolentavam às portas dos cafés, talvez nessa
vontade de escapar que se adivinhava, como uma emboscada, na calmaria. Cidade
perigosa, esta. E no meio da devastação do calor, no meio da estranheza,
erguia-se o nosso homem, embriagado com sua própria altura: soy Pepe el Guia! repetiu
de braços abertos. Como se este personagem fosse uma abstração preexistente, e
um homem, um simples pepe, um simples guia, neste símbolo se tivesse encarnado.
Diante de nossa mudez e de nosso respeito, confortou-nos: “pero ustedes tienen
un amigo en Pepe el Guia”!
Mas por que dizê-lo com tristeza? Triste, valoroso,
bêbado, a dominar melancolicamente castelos que só ele, e por um instante de
graça, nós viamos nas casas baixas de
Córdoba. Era um amigo, sim. Amizade de um momento, amizade paga, mas com todo o
desespero da amizade: éramos amigos e, no entanto, que poderíamos dar um ao
outro? Senão reconhecermo-nos.
Nós reconhecíamos nele Pepe el Guia, e ele em nós – aqueles
que o reconheciam.
E que amigo sensível. Uma palavra descuidada ofendia-o,
um gesto apenas esboçado de dúvida o feria – imediatamente recuava, dando
espaço ao desembainhar da espada. Humildes e apressados, explicávamos a nossa
pouca vontade de ofendê-lo, assegurávamos nossa confiança absoluta na sua
sabedoria de vagas datas, onde histórias de mouros antigos se entrecruzavam com
a de turistas ingleses, “amigos seus para sempre”. Dom Pepe examinava as
desculpas antes de aceitá-las, hesitava longamente, ainda ameaçador. Nós
aguardávamos ansiosos e na verdade
bastante enojados. Afinal, num repente, reconciliava-se e prosseguia, ainda
mais ardente na amizade fortificada.
Verdade é que de Córdoba soubemos pouco mais do que
sabíamos, soubemos das noites cheirando a nardo
e a jasmin, soubemos o que víamos e o que pressentíamos. Mas de Dom Pepe, sim,
soubemos que não havia alma viva em Córdoba: Córdoba non: España! – que não o
conhecesse e louvasse. España só? Não. Marrocos, Argel, Egito... Os estranhos
comércios que este homem já fizera, trocando cavalos decerto alheios, comprando
tâmaras e azeitonas – comércio da antiguidade, mais aventura que comércio, mais
viagem que proveito, mais vida que dinheiro. E a família de Pepe? Não era
somente a família que sua força havia criado e com que abundância, era também a
família de seu irmão morto na guerra civil, era também a família de seu cunhado
morto na Guerra Civil. Quem diz família diga três tribos que a sua generosa
irresponsabilidade abrigava. E quem lê família que veja bando de mulheres curtas
e doces abanando-se no pátio com os olhos entrefechados, que veja meninos e
rapazes paralisados para o trabalho pela esperança de tourear, ou pela
esperança: que veja as grandes comidas que são necessárias para alimentar
tantos sonhos.
O que não impede que Dom Pepe por um triz não puxe a
espada quando tentamos pagar um xerez especial que só Pepe el Guia conhece e
oferece. Ofendido na sua raça, trêmulo no hábito secular da indignação –
Ustedes me matan!
Pagamos o xerez, agradecemos-lhe a oportunidade de
conhecer bebida tão rara que em qualquer botequim espanhol servem. Nosso amigo,
ainda emocionado com o drama de uma amizade quase desfeita, em sinal de perdão
e magnanimidade, diz que aceita mais dois “copitos” que, para a nossa confusão
e vergonha, havíamos esquecido de lhe oferecer.
Revista O Cruzeiro, 18 de fevereiro de 1950