quinta-feira, 28 de junho de 2012

A "diferente" Clarice Lispector faz doer os nervos

Autógrafo em O Lustre, da biblioteca de Benjamin Moser
Sabe quem é o autor mais citado no twitter? Sim, é Clarice Lispector. Diz levantamento recente do YouPix que ela é citada 3,5 mil vezes por dia. "Ah, mas muitas frases não são delas", tem gente que reclama. Também não faltam gaiatos para escrever uma sandice qualquer e assinar Clarice Lispector como se isso fosse muito, mas muito engraçado. Pra mim, se 10% das frases forem  verdadeiras já é o máximo. Gosto dessa faceta pop de Clarice que em vida esteve longe de ser campeã de vendas e precisou ralar em trabalhos para jornais e traduções para sobreviver. E ela ainda tinha a fama de “diferente”, desde os primórdios, como mostra essa matéria abaixo, de 17 de março de 1946, de Solena Benevides Viana, a mesma da entrevista do post anterior. Aqui, a jornalista escreve sobre o primeiro encontro com Clarice que estava no Rio para lançar seu segundo livro. E só pode ter sido nesse encontro que Clarice autografou O Lustre para Solena e esse exemplar faz parte da biblioteca brasileira de Benjamin Moser, autor da biografia Clarice,. Gentilmente, Benjamin, o enviou (foto acima). 

Abaixo, a matéria publicada na coluna Miscelania do Suplemento literário do jornal carioca Amanhã.
                                                                      



Ao saber que Clarice Lispector estava no Rio, de passagem, resolvi aproveitar a oportunidade e agradecer-lhe uma antiga gentileza. Confesso, também, que me movia uma certa curiosidade de conhecer pessoalmente a escritora que, durante algum tempo serviu de assunto à grande parte das “rodinhas” literárias da cidade e, principalmente, às dos novos.
   Não só o seu primeiro livro foi discutidíssimo, levantando a comentada questão sobre se a autora teria sofrido ou não influência de Joyce – contra o que há o argumento de que o seu livro já estava escrito quando travou conhecimento com a obra do grande autor inglês – como a própria Clarice Lispector passou a figurar na lista das pessoas “diferentes”.
  Telefonei-lhe, pois, e marcamos um encontro que não teve, em absoluto, caráter de entrevista. Foi apenas uma palestra cordial sem a preocupação de colher informações, que versou sobre assuntos os mais variados. Uma miscelânia, enfim.

Para começar, Clarice pode ser “diferente” mas não no sentido que lhe querem dar. Fisicamente é uma moça esbelta, alta, loura, de olhos claros, de maneiras simples e naturais. Não se mostra demasiado expansiva, nem muito retraída. Como se vê, portanto, até agora – nada de “diferente”. Confessou-me, com toda a sinceridade, estar naquele dia em ótima disposição de espírito, não obstante o calor – que era tremendo!!! – o que nem sempre se verificava. Mas, qual é aquele que se pode gabar de conservar inalterável o seu humor!

Estudou direito, interessada sobretudo em direito penal; todavia, entre outras coisas, depois de tomar parte num júri simulado desinteressou-se da aludida disciplina e passou a cogitar de outros afazeres. Exerceu atividades jornalísticas durante quatro anos, tendo trabalhado inclusive em “A Noite”. Em 1944, embarcou para Nápoles, onde residiu dois anos no Consulado por falta de habitações e, hoje em dia, a sua maior aspiração é... uma casa!

Na Itália, as perturbações da época interfiriram na sua vida. Passou cerca de um ano quase sem sair de Nápoles, limitando-se a fazer algumas viagens a Roma. Ultimamente conseguiu ir a Florença. Apesar dos naturais estragos causados pela guerra a maioria das obras de arte foi poupada. Várias galerias ainda estão fechadas, num trabalho de reforma e reorganização. Toda a Itália, aliás, se ergue aos poucos. E aos poucos renascerá o seu ânimo e a sua glória.
Quanto ao movimento literário italiano, dentro do âmbito restrito que lhe foi dado observar, o último conflito mundial nada introduziu de especialmente novo. As antigas tradições continuam a predominar, e o trabalho prossegue com esforço e esperança. A escultura e a pintura, segundo observou Clarice Lispector, estão sob a força de um grande impulso, tendo na vanguarda nomes como o de Leonor, Fazzini, Savelli, Guzzi, De Chirico.

As condições de vida na Itália a seu ver, são precárias, mas caminha-se para uma lenta reorganização. Os sofrimentos suportados incutiram nas criaturas uma nova coragem, permitindo-lhes encarar com ânimo forte situações desesperadoras. Certa vez, por exemplo, encontrou um rapaz iugoslavo aparentemente alegre, lançando mão de seus conhecimentos linguísticos para sustentar-se, enquanto aguardava oportunidade de embarcar com destino ao Brasil. Pouco depois foi surpreendido com a informação de que perdera toda a família na Iugoslávia. E acidentes desta natureza repetem-se diariamente.

Os gêneros alimentícios e artigos de primeira necessidade são vendidos por alto preço. O café, por exemplo, está a 2000 liras o quilo. Um negociante que se lembrou de vender camisas por 150 liras cada uma, acabou forçado a recorrer à intervenção da polícia. Lá também as atividades do câmbio negro são intensas.

Nesta altura da palestra, a escritora declarou-me – mais uma prova de que não é assim tão “diferente” – que pagou o seu tributo à decantada “saudade da pátria distante” e procurou mimitiga-la tomando... caldo de cana, bebida na qual antes, no nosso país, pouco pensava.
Portanto, diante do que acima ficou exposto, muitas pessoas devem estar conjecturando até agora: “uma criatura, assim tão humana, que sente saudades como toda gente e age com tamanha simplicidade, será mesmo “diferente”?

Sim, Clarice Lispector é “diferente”. É “diferente” na aplicação das suas energias, no amor ao trabalho, na sua produção literária. Sente necessidades de escrever, e quando dá início a uma obra a ela se consagra inteiramente. Não vacila em admitir a importância que atribui ao seu trabalho, o esforço dispensado à sua elaboração. E, por isso mesmo, embora respeite a opinião do público, regogizando-se quando nele encontra ressonância, coloca acima de tudo o mundo interior do escritor, o impulso criador que o animou e a liberação absoluta do  seu eu.

O seu estilo é único e escapa, muitas vezes, à percepção do leitor apressado. Não se pode ler um romance de Clarice Lispector como um simples passatempo, seguindo o enredo, salientando esta ou aquela imagem interessante. A sua intensidade exige do leitor o mesmo esforço de concentração com que foi escrito; faz doer os nervos. E assim Perto do Coração Selvagem surgiu inopinadamente na nossa literatura e nela permanece até hoje como um marco isolado.

Clarice Lispector acaba de publicar, pela editora Agir, O Lustre. Neste novo romance – fruto também de intenso labor – o ardor primitivo cedeu lugar à reflexão comedida, à psicologia sutil da análise dos sentimentos desordenados a uma poesia pessimista e vaga, que a cada passo se manifesta:
- Dez é como domingo. A gente pensa que domingo é o fim da semana passada, não é? mas já é o começo da outra. A gente pensa que dez é o fim de nove, não é? mas já é o príncipío de onze.
E ainda mais adiante, quando Virginia – a personagem principal – ao observar os bonecos de barro que modelara reflete:
“... mesmo bem acabados eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento. Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por eles mesmos, se isso fosse possível.
E as dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo”.

Na sua visão sombria, ou talvez fosse melhor dizer, na crueza da sua realidade, dentro da originalidade que o caracteriza, o livro assinala mais uma vitória para sua autora.
                          

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